segunda-feira, 29 de junho de 2009

MAFFESOLI E A FEMINIZAÇÃO DO MUNDO


Sociólogo reflete sobre ecologia, moda, tecnologia e vagina

Em sua passagem por Caxias do Sul (RS), o sociólogo Michel Maffesoli preconizou a era da tecnomagia, na qual um simples celular vira ícone de reunificação de tribos globalizadas. Neste panorama pós-moderno, ecologia, moda e vagina também harmonizam a vida.

Qual a contribuição da fantasia e do festivo para o reencantamento do mundo?

Michel Maffesoli:
O que caracterizou a modernidade, que acaba de se passar em cinco séculos, foi uma racionalização de toda a vida social. Foi isso que deu um grande desempenho à Europa. Para que essa racionalização acontecesse, jogo, sonho e fantasias foram, se não totalmente evacuados, limitados à vida infantil ou a momentos à parte da cultura. A seriedade da existência, o trabalho, tudo o que dizia respeito à economia e à indústria, eram essenciais nesse período. Havia uma vida paralela, por assim dizer. Uma característica da pós-modernidade é a possibilidade de esses elementos que foram marginalizados voltarem ao cerne da vida social. São as jovens gerações que portam esses valores da fantasia, da criatividade, do prazer e da alegria de viver. Historicamente, existiram outros períodos de grande cultura, como o Renascimento, com valores de prazer, sonho, festividade. Existe hoje um retorno daquilo que foi o Renascimento.

Diante da crise, como construir uma sociedade mais harmônica?

Maffesoli:
Não tenho certeza de que seja preciso construir. A harmonia vem naturalmente. Quando temos uma criança harmoniosa com seu corpo e mente, ou mesmo um adulto com graça, não há uma construção disso. Minha resposta talvez seja totalmente utópica. Mas me parece que hoje há uma espécie de elã interno, vital na sociedade, que não se reconhece mais só no trabalho, no dinheiro. Há uma espécie de humanismo. E, insisto, as novas gerações são portadoras desse movimento por meio da tecnologia. Setenta por cento do tráfego da internet recorre a formas de solidariedade e generosidade. São sites comunitários, fóruns de discussão.

São o telefone e o computador portais do que o senhor denomina tecnomagia? Quais os bens e os males destes objetos de desejo contemporâneos?

Maffesoli: A tecnologia do Século 19 separava as pessoas, constituindo uma sociedade de isolamento absoluto. Ficava-se em casa com seus objetos técnicos, sem criar laços sociais. Seria ingênuo se dissesse que isso não acontece mais. Observamos bem um processo gregário de solidão nas grandes megalópoles. Mas, ao mesmo tempo, vemos esses meios de comunicação interativos criando uma forma de reencantamento da existência. Estamos sempre em relação com o outro. Isso recria a velha ideia de comunidade. O que eram as tribos pré-modernas? Elas utilizavam os objetos técnicos do momento de uma forma mágica, criando laços, relações. A metáfora que proponho é a de que o telefone celular e o microcomputador desempenham mais ou menos o papel do tambor das sociedades primitivas. No centro que dirijo, na França, estamos fazendo uma pesquisa sobre a tecnomagia, tentando mostrar como a tecnologia é, ao mesmo tempo, um objeto técnico e desempenha o papel do totem.

Sendo a moda interlocutora de relações entre tribos, como avaliar as vítimas da moda?

Maffesoli: De fato que existem fashion victims. Mas é simplista colocar o fato nesses termos, é uma concepção muito moralista, nostálgica da ideologia do individualismo. Eu acho que o individualismo acabou. É difícil dizer isso. Significa que a grande ideia de liberdade não é mais um valor atual. Sempre queremos estar em contato com o outro, de fazer como o outro. Aí está a viscosidade. Gabriel Tarde denominou isso de a lei da imitação, que predomina atualmente. Se tomarmos a ideia da tribo, só existimos pelo e através do olhar do outro. Não se trata mais de uma questão de liberdade, trata-se de uma dependência. Todos temos vícios. Pode ser a droga, o álcool, roupas, sexualidade, religião. Essas coisas são muito viciosas. Desde o momento em que existe a prevalência da moda, nos tornamos prisioneiros do outro em suas características. Temos aí uma inversão de polaridade, uma verdadeira mudança, e não podemos julgar isso com os critérios modernos. Quando vemos um grupo de jovens vestidos, se comportando e falando da mesma maneira, podemos dizer que são fashion victims, mas também que se trata de um laço comunitário. É uma questão de laços. Estamos ligados.

Quais são os pactos necessários para a salvaguarda da vida no planeta?

Maffesoli:
Que vasta questão! O pacto primordial é o ecológico. Não se considerou a natureza como um simples objeto a ser dominado, a ser explorado, e isso levou a sua devastação? Isso vai acarretar na devastação do homem também, assim como houve com outros animais. Atualmente existe uma espécie de conscientização de considerar a natureza como uma parceira. Aí a noção de pacto se aplica bem. Pressupõe interação, que chamo de reversibilidade, e integra os elementos emocionais, afetivos e sensíveis. Agora se pensa a natureza como interatividade. Ela não é simplesmente um objeto morto que posso manobrar. É uma realidade viva. No fundo aí está o verdadeiro humanismo. O humos no humano, este é o pacto.

Falar em “envaginar” os sentidos é valorar o feminino frente à derrocada do masculino na pós-modernidade?

Maffesoli: Sim. Aquilo que foi a grande tradição moderna, na perspectiva judaico-cristã, foi a prevalência de Deus pai, do homem, do masculino, com toda a grande concepção do fálico. O falo ereto é o símbolo dessa dominação da natureza. Primeiro foi a dominação do homem sobre a mulher, depois sobre a natureza. De forma empírica, ao nível da constatação, observamos nas últimas duas ou três décadas uma feminização do mundo. Isso introduziu, aos poucos, a pós-modernidade. Podemos também estabelecer uma relação entre a feminização e a sensibilidade ecológica. Para traduzir isso, uso o termo “envaginação”, que é forte, mas serve para provocar. No sentido essencial do termo, a vagina é a metáfora da terra mãe. Mas há uma nuance: em francês digo que não se trata mais do feminino, mas da “feminitude”. Para chamar a atenção de que até mesmo os homens participam desses valores de feminização. Posso ter uma realidade físico-química masculina e ter uma série de fantasias e tendências femininas. Isso é feminitude.

Fonte: http://www.clicrbs.com.br/especial/sc/vidafeminina/19,0,2559403,Maffesoli-e-a-feminizacao-do-mundo.html

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